Importância da qualidade do farelo de soja na indústria avícola

Warley Alves

Nutricionista de Aves

30 outubro 2023
-
6 minutos

A soja é amplamente utilizada na indústria avícola, sendo a principal fonte de proteína vegetal disponível e, de longe, a oleaginosa mais utilizada em dietas de aves em todo o mundo com este fim – isto porque é rica em proteína e aminoácidos essenciais, como a lisina e a metionina, além de ser uma excelente fonte de energia devido ao seu teor significativo de lipídios.

Por Warley Alves, Nutricionista de Aves

 

Neste contexto, o farelo de soja obtido após a extração do óleo do grão de soja é o seu produto derivado mais utilizado. Sua aceitabilidade universal se deve, entre outros atributos, à sua versatilidade de uso, elevado valor nutricional, alto teor proteico com excelente perfil de aminoácidos e por contribuir para o aumento do ter de energia da dieta. 

Em uma dieta típica para frangos de corte com milho e farelo de soja, o farelo de soja corresponde a até 70% da proteína bruta (PB) da dieta.

Figura 1: Representação esquemática do processamento da soja e obtenção de seus produtos.

Muitos fatores influenciam a qualidade do grão de soja e, consequentemente, do farelo que chega até à ave. Por exemplo, o conteúdo de proteína bruta (PB) do grão e do farelo de soja é dependente de fatores, como: cultivar, variações climáticas e geográficas, condições agronômicas e de solo, doenças e pragas, tipo e condições de processamento, armazenamento, conservação e outros. O conteúdo proteico do farelo é monitorado pela indústria de rações e ajustado constantemente na matriz nutricional na formulação de rações. Entretanto, a digestibilidade da PB pelo animal também é igualmente importante e esta é influenciada em grande parte pela adequação do processamento térmico realizado para inativar ou reduzir os fatores antinutricionais (FANs), especialmente inibidores de tripsina (TI). Tanto o subprocessamento quanto o superprocessamento são prejudiciais ao aproveitamento dos nutrientes do farelo de soja pela ave. Desta forma, o processamento deve ser rigorosamente monitorado por testes laboratoriais, como teste da urease e solubilidade proteica em hidróxido de potássio.

Apesar das qualidades nutricionais, a soja contém diversos fatores antinutricionais (FANs) em sua composição. Entre estes FANs presentes no grão, destacam-se os inibidores de proteases (tripsina e quimiotripsina), as hemaglutininas – também conhecidas como lectinas – e os fitatos. Alguns deles são termolábeis, o que significa que podem ser inativados ou reduzidos por meio do tratamento térmico adequado. Quando não são inativados eficientemente, estes FANs podem causar distúrbios gastrointestinais, comprometer a saúde, interferir no funcionamento de diversos tecidos e órgãos, prejudicando o desenvolvimento e o desempenho produtivo das aves. Portanto, o tratamento térmico é fundamental para garantir a utilização segura do farelo de soja na alimentação das aves.

 

Figura 2: Relação da atividade de urease (∆ pH) da soja integral extrusada no ganho de peso (GP) e na conversão alimentar (CA) em frangos de corte.

Figura 3: Relação da atividade de inibidores de tripsina e urease (∆ pH) da soja integral extrusada no ganho de peso (GP) e na conversão alimentar (CA) em frangos de corte.

 

Fatores antinutricionais presentes na soja crua:

  • Inibidores de tripsina e quimiotripsina (Kunitz e Bowman-Birk): proteínas que interferem na atividade das enzimas tripsina e quimiotripsina, responsáveis pela quebra das proteínas em aminoácidos durante o processo digestivo. Isto pode resultar na redução da digestibilidade das proteínas presentes na soja e, consequentemente, na absorção de aminoácidos essenciais. Além disso, causam sobrecarga do pâncreas, levando à hipertrofia do órgão devido ao aumento na secreção enzimática para compensar os inibidores e digerir as proteínas.
  • Lectinas: também conhecidas como hemaglutininas, são proteínas que se ligam às células do trato gastrointestinal, causando a interferência não específica na absorção de nutrientes;
  • Fatores alérgicos (Glicinina e ß-Conglicinina): reduzem a absorção de nutrientes e causam efeitos deletérios sobre as microvilosidades do intestino delgado;
  • Lipase e lipoxigenase: promovem a oxidação e rancificação da gordura da soja;
  • Fitatos (ácido fítico): são compostos que podem se ligar a minerais, como cálcio, ferro, zinco e magnésio, formando complexos insolúveis e reduzindo a disponibilidade destes minerais para absorção pelo organismo. Isto pode levar a deficiências minerais em animais e seres humanos que consomem grandes quantidades de soja não processada.
  • Polissacarídeos não-amídicos solúveis (PNAS): divididos em três grandes grupos, sendo eles: celulose, polímeros não celulósicos (pentosanos, arabinoxylanos, xylanos, ß-glucanos) e polissacarídeos pécticos (glicomananos, galactomananos, arabinanos, xiloglucanos e galactanos), entre outras moléculas. Sua atividade antinutritiva prejudica a capacidade digestiva das aves.
  • Saponinas: são moléculas que podem interferir na função das membranas celulares, reduzindo a absorção de alguns nutrientes. Elas também podem afetar a saúde intestinal e a absorção de lipídios.
  • Taninos: são compostos que podem afetar a digestão de proteínas e interferir na absorção de nutrientes, como ferro e zinco.

Além de inativar os FANs, o aquecimento também eleva o valor nutricional do alimento derivado de soja ao provocar a gelatinização do amido. Este processo desagrega as frações de amilose e amilopectina presentes nos carboidratos, tornando-as mais disponíveis para a ação enzimática endógena. Os métodos utilizados para inativar os FANs e, assim, aumentar o valor nutricional dos alimentos, resultam essencialmente da combinação de calor, pressão e tempo. Vale ressaltar que o teor de água no ingrediente durante o processo afeta diretamente a eficiência e o resultado do tratamento. Diversos métodos e equipamentos estão disponíveis para este fim e suas particularidades e execução têm impacto significativo no valor nutritivo dos produtos de soja e na digestibilidade da dieta. Contudo, é importante mencionar que o processo não está isento de erros e o farelo de soja pode estar sujeito a sub ou superprocessamento.  Gráfico 1: Efeito da temperatura de extrusão e do teor de umidade durante a extrusão na inativação dos inibidores de tripsina (TIA mg/g) em farelo de soja integral.  

O superprocessamento ocorre quando a soja é exposta a temperaturas excessivamente altas, resultando na desnaturação das proteínas. A desnaturação proteica é o processo pelo qual as estruturas tridimensionais das proteínas são alteradas, tornando-as menos solúveis e menos digestíveis, afetando a digestibilidade de aminoácidos essenciais, como a lisina e a metionina, que são cruciais para o desempenho das aves. Além disso, o superprocessamento gera compostos indesejáveis, como os de Maillard, o que leva a uma diminuição da digestibilidade da lisina e do desempenho das aves. Enquanto, o subprocessamento ocorre quando o tratamento térmico é insuficiente, resultando na inativação insuficiente dos FANs, com consequente redução da digestibilidade de aminoácidos essenciais, afetando negativamente a qualidade nutricional da dieta e o desempenho das aves.

Deste modo, é crucial evitar tanto o processamento excessivo quanto o deficiente para assegurar a máxima digestibilidade dos aminoácidos e a qualidade nutricional da ração fornecida às aves, o que reforça a importância de um controle rigoroso do processamento térmico da soja, garantindo a preservação das proteínas em sua forma mais digestível e nutritiva. E, de fato, diversos métodos foram desenvolvidos para avaliar a inativação dos fatores antinutricionais na matéria-prima. Mas, na prática, a atividade ureática e a solubilidade proteica são os métodos mais comuns para avaliar a qualidade do farelo de soja, devido à sua rapidez e eficiência em comparação com outros métodos mais dispendiosos e demorados.

 

Tabela 1: Efeito da autoclavagem de flocos de soja no desempenho dos pintinhos, na solubilidade da proteína, no índice de urease e no índice de dispersibilidade da proteína. Adaptado de Brito et. al. (2006).

O teste de atividade ureática é eficaz para identificar a desnaturação dos fatores antinutricionais na soja, pois se baseia no princípio de que a urease, presente na soja, é desnaturada na mesma intensidade que os inibidores de tripsina. O índice de urease é determinado pela reação da urease com ureia, que libera amônia e altera o pH da solução. Um valor entre 0,00 e 0,10 de Δ pH é o ideal, sendo que valores mais próximos a zero indicam melhor qualidade no processamento. No entanto, a atividade ureática não é tão precisa na detecção do processamento excessivo. Para contornar esse problema é realizado o teste de solubilidade proteica em hidróxido de potássio a 0,2%. Este teste permite verificar o quão solúvel é a proteína presente no FS. Para ser considerado de qualidade, o FS deve ter entre 76 e 89% de solubilidade proteica, pois valores acima de 90% indicam subprocessamento e abaixo de 76% indicam superprocessamento.

 

Tabela 2: Comparação entre a disponibilidade da proteína e a inativação dos FANs pelo método da proteína solúvel em solução de hidróxido de potássio a 0,2%.  

Diante do exposto, fica claro que a soja representa uma fonte quase insuperável de proteína nas dietas das aves, devido à sua qualidade nutricional, alto teor proteico excelente perfil de aminoácidos e sua contribuição para a energia da dieta. Contudo, é crucial garantir a qualidade da soja e do farelo de soja para maximizar o desempenho das aves. Desta forma, é essencial assegurar a inativação eficiente dos fatores antinutricionais, como os inibidores de tripsina e as lectinas, sem que haja perda da qualidade da proteína por processamento excessivo. Isto requer o controle rigoroso do processamento, avaliado por meio da análise de atividade dos inibidores de tripsina, atividade ureática e solubilidade proteica, para assegurar o processamento correto e, assim, a máxima expressão do valor nutricional, garantindo dietas saudáveis e produtivas para as aves.

 

Literatura recomendada: 

Araba, M.; Dale, N.M. Evaluation of Protein Solubility as an Indicator of Underprocessing of Soybean Meal. Poult. Sci. 1990, 69, 1749–1752.DOI:10.3382/ps.0691749

Brito, C. O., Albino, L. F. T., Rostagno, H. S., Gomes, P. C., Dionizio, M. A., & Carvalho, D. C. O. (2006). Adição de complexo multienzimático em dietas à base de soja extrusada e desempenho de pintos de corte. Revista Brasileira De Zootecnia, 35(2), 457–461. DOI:10.1590/S1516-35982006000200017

Clarke E. & Wiseman J. (2007) Effects of extrusion conditions on trypsin inhibitor activity of full fat soybeans and subsequent effects on their nutritional value for young broilers, British Poultry Science, 48:6, 703-712, DOI: 10.1080/00071660701684255

Hemetsberger, F.; Hauser, T.; Domig, K.J.; Kneifel, W.; Schedle, K. Interaction of Soybean Varieties and Heat Treatments and Its Effect on Growth Performance and Nutrient Digestibility in Broiler Chickens. Animals 2021, 11, 2668. DOI:10.3390/ani11092668

Hemetsberger, F.; Hauser, T.; Domig, K.J.; Kneifel, W.; Schedle, K. Interaction of Soybean Varieties and Heat Treatments and Its Effect on Growth Performance and Nutrient Digestibility in Broiler Chickens.Animals 2021, 11, 2668. DOI:10.3390/ani11092668

Hoffmann, D.; Thurner, S.; Ankerst, D.; Damme, K.; Windisch, W.; Brugger, D. Chickens’ growth performance and pancreas development exposed to soy cake varying in trypsin inhibitor activity, heat-degraded lysine concentration, and protein solubility in potassium hydroxide. Poult. Sci. 2019, 98, 2489–2499. DOI:10.3382/ps/pey592

Parsons, C.M.; Hashimoto, K.; Wedekind, K.J.; Baker, D.H. Soybean protein solubility in potassium hydroxide: An in vitro test of in vivo protein quality. J. Anim. Sci. 1991, 69, 2918–2924.DOI: 10.2527/1991.6972918x

Pedersen, P. and Lauer, J.G. (2003), Soybean Agronomic Response to Management Systems in the Upper Midwest. Agron. J., 95: 1146-1151. DOI:10.2134/agronj2003.1146

Perilla, N. S.; Cruz, M. P.; Belalcázar, F & Diaz, G. J. (1997) Effect of temperature of wet extrusion on the nutritional value of full‐fat soyabeans for broiler chickens, British Poultry Science, 38:4, 412-416, DOI: 10.1080/00071669708418011

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